vieiracalado-poesia.blogspot.com

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segunda-feira, 26 de junho de 2017

ROSAS E ESTRELAS

               A rose 
               is a rose

               Gertrude Stein

                                                          

            Rosas são rosas, no dizer britânico.

            Ela disse rosas. Eu digo estrelas.
            E céus e átomos e neutrinos
            e o protoplasma que deu cor ao perfume das rosas
            e ao ser pensante que pensou sobre o próprio pensamento
            e ao feixe hertziano que há-de pairar
            sobre todas as cabeças de todos os seres pensantes,
            em todos os céus e todos os universos.

            Digo estrelas porque as estrelas também florescem
            e morrem
            como as rosas se acendem numa fragrância de cores
            e fenecem
            perdurando na memória do ser-pensante,
            ele próprio pó das estrelas, átomos e neutrinos
            como um deus eterno e distraído
            na solidão para sempre eterna e distraída.



segunda-feira, 5 de junho de 2017

IMAGINO

f
Imagino uma folha de papel branco,
uma ideia de horizonte
para as fronteiras da luz,
a margem vigilante       
da utopia.

A ideia assume-se
no espaço da página,
em promessa indizível
incendeia-se.

A palavra floresce
a metáfora nua
dentro dum casulo de memórias
de pele verdadeira.

É infinita
no círculo das águas,
na precária transição
para o real,
o quotidiano inconsciente.

Tanto recobre os interstícios
da página
como se sobrepõe ao vazio do espaço,
na cor neutra do vidro.

Uma página em branco
É
o lugar do amor
o lugar
duma impressãozinha vegetal
na parte de fora da alma,
junto aos muros do sangue

bruma branca de reminiscências
as mais interiores   encobertas
as mais pardas   fundas

Sobre a página se desenha a corda
entrelaçada,
linhas curvas vergam para além
dos limites do chão,
transcendem a própria ideia de espaço,
voam até ao princípio
da luz
que ainda brilha nas praias
da inocência.

A ideia pressupõe um inventário
de cores virtuais,
arestas que se dissolvem
nos poros da matéria
onde se inscreve o espaço
do contexto.

É enorme o seu campo,
o verdete azul
das vozes pronunciadas
que disseram um caminho exangue
sobre as ondulações do tempo

para que seja possível regressar
à pureza dos dias intermináveis
em aliança com o infinito,
ao marfim dos olhos livres
nas sebes da paisagem –

provável conhecedora dos ecos
repetitivos do tempo


na palavra do poeta.

domingo, 30 de abril de 2017

POEMA EM MAIO



Com seus tambores de fogo e cinza
o mel da manhã menino
de luz e sombra ‒

rosto lesto rosto
de alísio ágil cio.

O mês em que nasci.

A bruma e o sol.

O sul nascente.


O mar.

domingo, 16 de abril de 2017

CAMALEÃO


Quando voltei definitivamente a Portugal, 
já depois do 25 de Abril, decorridos que tinham sido onze anos, entre Londres e Paris 
(e muito do resto da Europa),
publiquei quatro Poemas/Postais de Intervenção.
Estávamos em 1978. 
Este era um deles. 
Hoje é actual. 



terça-feira, 4 de abril de 2017

O VERME


Hoje percebo o cortejo dos homens
no altar do tempo
        sem preço
        sem promessa
        sem vitória.

Hoje percebo o ajeitar da fêmea
e o sôfrego momento viril
da eternidade transmitida.

Hoje percebo o sal, o estrume
o reclame dourado do sol.

E até o verme repugnante
que nas mãos invento aos poucos
e nos sinais descubro o mesmo ciclo
de eternidade viva
        hoje
que eu vivo

percebo e canto

domingo, 12 de março de 2017

Leste nas estrelas

o

Leste no rosto lesto das estrelas
o fulgor obstinado dos átomos do hidrogénio,
os átomos do mais ínfimo alimento da utopia,
a sua inconsciente ciência, o seu credo austero
na probabilidade duns olhos fascinados

e percebeste a força interior universal
que anseia os equilíbrios, o plano horizontal
na harmonia dos espaços e horizontes,
desentorpecendo a bruma das montanhas,
despertando-a em enérgicos impulsos de energia.

Leste a sina das árvores numa pedra
adormecida sob outras pedras,
acaso portadoras dos signos do enigma
que procuras no abandono dum jovem morto
apodrecendo ao frio da tarde que não volta.

Leste as profecias escritas na música arrebatada
dalgum músico, ou dum outro visionário
da fraterna condição do homem,
na Terra exausta de cansaço e angústia
de ver a agonia de seus filhos subvertendo a luz.

Leste a tua sina nas cinzas da inocência
como a duma árvore que esquece o tempo
e arde para os outros como se fosses tu mesmo
quando vier o frio aos ossos, no outono.

terça-feira, 7 de março de 2017

Junto ao mar, nesta Baía



Junto ao mar, nesta baía suave de azul cobalto,

deixo-me envolver nos confins do pensamento,

o recorte do céu, a expressão mais nua do chão



e contemplo a narrativa das areias desta praia,

a voz antiga que desfez a pedra dos montes

no tumulto das grandes impiedosas chuvas.



O meu arrebatamento é a história que leio

nos veios engendrados pelo refluxo da maré,

as algas deixadas junto ao limite das águas



a própria índole maiúscula dos grãos de areia

que jazem ao sabor da vastidão dos abismos

traçados nos penhasco descidos da montanha.



Ela ensina-me a sedução pela espuma rigorosa

das vagas vindas de longe, trazidas no vento,

as correntes telúricas das montanhas do mar



e mostra-me o decurso inteiro e obstinado

que vejo nas conchas despojadas de moluscos,

nas algas que sucumbiram à força do tempo.



Aqui me atenho e entendo este abraço fraternal

das águas ajuntado os restos terminais da terra

antes do grande dilúvio da paz do sol poente



e ergo a minha voz e canto os espaços libertos

na voz multifacetada das águas do grande mar,

o azul pálido da vastidão pluricolor dos céus.



em MARENOSTRUM, a publicar em Maio, na "8ª  Mostra de Livros de Autores de Lagos"

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Lagos - Rua Direita

Rua Direita da minha infância, centro do mundo,
avenida de todos os universos da minha vida!

Ó rua da minha ingénua idade, da ingenuidade
da infância da minha vida, ó rua centro do mundo!

Rua demais estreita, para o meu ser vagabundo,
neste caminho incerto, para um beco sem fundo!


O vídeo pode ser visto AQUI

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

DO TEU CORPO ENGENDRARÁS


Do teu corpo engendrarás um edifício
de palavras,
a palavra que quiseres ser um fruto fraternal.

O ministério da saliva fará o que fazem as mãos
ao oferecer uma flor

para que a palavra seja o fermento
de outras flores e seus frutos
para oferecer

a outras mãos que passam.

em "Os Múltiplos Lábios da Página", a publicar

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

A INTENSIDADE DAS COISAS

.
A intensidade das coisas
define-se no espaço,
o seu perfil intransigente
habitado pelos ângulos da luz.

Nada se afasta do seu interior acto de destruição,
a fenda do nevoeiro envolvendo
o halo dos rios, numa ideia que passa.

As coisas são o espectro próprio das coisas,
o seu movimento fortuito, uma voz lenta
descrevendo os cinzentos, a cor negra
das ausências, como um canto extinto.

Apenas permanece, no decurso aberto
que habita as lembranças, uma intensidade
idêntica ao exercício rigoroso das palavras.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

OS TRABALHOS DA LUZ


Os trabalhos da luz
explicam as sombras da luz.
.
Disfarçam o seu ardor íntimo
articulado em saberes próprios
da ausência da luz.

E somos nós os destinatários
os eruditos
em suas mistificações

para encobrir a evidência
do eterno retorno dos séculos
e de outras criaturas
também ciosas de luz.


E agora veja os "trabalhos da luz", 
na praia do mesmo nome, no concelho de Lagos  aqui

domingo, 22 de janeiro de 2017

O CORAÇÃO CONHECE O SEGREDO


O coração conhece o segredo dos pássaros,
a ânsia de horizontes para além do horizonte.

O segredo dos pássaros é uma centelha
de luz rebuscando a simplicidade duma vida

imagens móveis que alargam o nosso chão,
apenas em memórias difusas de exiguidade
e fantasmas de veludo passando mãos inertes
sobre o nosso rosto. 

Ou labaredas azuis duma tarde quente
e o fio dum arco-íris
em suas cores de transparência e frio.

O coração conhece o segredo dos pássaros
e o seu degredo.

E eu apenas recomeço os trabalhos 
da simplicidade da minha vida
e reconheço a sua exiguidade
guiada por horizontes de bruma.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Afonso Henriques, eu


Afonso Henriques eu, de espada de madeira
eu
de espada em punho a vida inteira.

Criei a eternidade do meu mundo
no universo
abri impérios e epopeias desde o berço
arrisquei mitos e quimeras para vencer
corri santos e deuses e sinais
e onde havia perigos a temer
foi onde aventurei e cresci mais. 

Afonso Henriques, eu, a vida inteira 
eu
empunhando uma espada de madeira!

Veja o vídeo AQUI  c/ música de Mozart

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

TU

Negros  são  os teus cabelos loiros
amarelos também teus olhos cinza,
de negro tingirei minha alma azul.

E se gosto tanto dos teus olhos
o verde intenso de teus seios
o rosa velho dos teus lábios
e me fica tão bem a alma azul

é porque demais gosto
dos tons variados do arco-íris.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Os Trabalhos do Tempo

(poemeto)

O tempo mastiga-nos os ossos
e depois a respiração.

Atira-nos à cara o medo dos poços
e desenvolve a equação
da ideia circular

do pó.


quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

BELO


Belo
é caminhar por entre o verde,
saber que se ganha e que se perde
e ficar-se a sorrir, sempre.

Belo
é ver cair à volta o mundo,
ouvir-se o lamento do moribundo
e ficar-se a rir eternamente.

Belo
é não pensar, não ler, fantasiar
e nas grandes noites
apenas sonhar, sonhar.

Belo
é o grande mar, o céu azul
e o doido que ri,
sem saber o que quer ou o que não quer.

Mas o mais belo de tudo,
é a mulher.


Todo o belo que existe, 
cabe em si.


sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

COMPACTO DE NATAL - 4 poemas

NATAL I

Uma ideia persiste no coração do mundo:
a imagem pura a água limpa duma fonte
uma palavra chã em seu natural anseio

Por ela meditaremos em antiquíssimos relatos
a viuvez dum musgo na frágua da montanha
ou o desterro para uma flor esfarrapada
tolhida em  absurdos espectáculos de agonia

E façamos do murmúrio um chão sadio
que floresça a urze do chão remoto
o ofício da luz abrindo devagar a terra
para os frutos indomáveis da alegria.

Os nossos dias também têm um sentido lato
superior às minguas às figuras de excesso
mais profundo que o mecanismo duma roda.

Por isso celebremos hoje a ideia de Natal
para que seja um exercício repetido de louvor 
à grandeza anónima irrepetível duma vida.


NATAL II

A ideia de Natal é uma ideia em construção
uma casa comum de barro generoso
feito do sangue e da probabilidade duma cidade
cheia de luz, emergindo de obscuro impulso, 
um promontório temível que despedaça as águas 
impelidas por vento que vem do chão.

Evocar o Natal é uma ideia de harmonia
entre os naturais irmãos da terra, 
o decurso duma semente que floresce
ao calor dum gesto sempre inacabado.   

Façamo-lo hoje ao cair da noite
para celebrar a vida, numa ideia de paz
para que o barro floresça em paz até ao fim.


Natal III

Naquela noite fazia frio fazia pena 
ver almas despedaçadas deitadas corpos entrouxados 
dispersos nas calçadas luzidias do passeio das ruas.

Caía uma névoa fina que simulava chuva punhais 
de raiva e resignação ou antes uma levada de mágoa 
de murmúrios sem data sem fumo sem restos de cio 
perdidos num mar de pedras nas calçadas da rua. 

Era uma noite de claustros tambores rufando clamando 
os clamores da vida a náusea descrente na boca sofrida 
o granito fundido já duro das lutas perdidas 
pisado nos ossos nos ombros nos olhos que olham 
as coisas de fora nas coisas de dentro 
e as noites nos dias e os búzios na praia sem vento 
soprando as pedras do passeio da rua.

Doía a quem doía não fora a noite uma noite 
de aprazimento em todas as aldeias da cidade 
tempo de alegrias acepipes farturas alvarinho 
em casas abastadas sobranceiras aos passeios da rua -
o mais vago grave desígnio dum oráculo de plenitude 
na inocência das crianças nas crenças na sentença 
dos mecanismos que levam ao enternecimento 
por ver a chuva a cair sobre corpos alheios 
prostrados enrodilhados no manto do passeio das ruas.


NATAL IV

Vem das profundezas do fim das trevas
um caminho mítico para os exercícios da alegria
ali tão perto no barro ainda mole dos antigos.

Assim o pressentimos em fogos de encantamento
na enorme plenitude do orvalho das manhãs.

Talvez nos enredemos em ludíbrios ágeis
pela cerimónia de louvar a imagem virtual dum deus
no seu nicho distante negligenciando as vozes da planície
mas vale a pena tentarmos nós próprios a utopia
porque os deuses estão longe delidos noutros dilemas
noutras abstrações inatingíveis
porventura ainda mais utópicas que as nossas.

Diremos Natal como quem diz um bálsamo
ou um violoncelo tangendo um prelúdio chão
testemunho duma fogueira na água
e no pó do nosso destino também um murmúrio incerto
alheio à vontade transparente das estrelas.

* Destes poemas foram elaborados cinepoemas
  que podem ser vistos, seguidos, AQUI